Pesquisar este blog

terça-feira, 29 de abril de 2014

Direito a propriedade: Algo pertencente à condição humana

O trabalho que propomos desenvolver busca fazer uma relação do ponto de vista teórico de Pocock quando este trata da “Mobilidade da propriedade e o nascimento da sociologia do século XX”, e através desse esboço teórico procurar compreender o conceito de propriedade pregado pelo Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST). Nesse sentido se faz necessário compreender e ressaltar que do ponto de vista teórico abordado na concepção de Pocock a luta pela terra/propriedade é como algo não exterior ao individuo, ou seja, o direito a terra é parte que está enraizada no cerne das concepções humanas. Nesse sentido, nosso objetivo aqui é apresentar de forma simplista à concepção do “Direito natural” de acesso a propriedade, tanto do ponto de vista teórico do autor em questão, como também do ponto de vista dos integrantes do MST.
Através da análise da obra de Pocock, é possível fazer uma relação com a ideologia do MST, o direito a propriedade se entende como uma extensão da personalidade do individuo, nesse sentido, ela é de direito, e esse direito sobre a perspectiva dos “Sem Terra” só é adquirido com luta de uma “massa” organizada, e essa busca pelo acesso a terra não é apenas contra o latifundiário, e sim contra o Estado que deve combater o latifúndio improdutivo através da implantação da Reforma Agrária. Nesse sentido, o acesso a terra dentro das perspectivas legais, significa o acesso à dignidade humana a autoridade e a virtude. Em suma, o trabalho buscará analisar através da teoria da propriedade de Pocock, o posicionamento ideológico do MST frente às mobilizações de luta pela terra.
Para apresentar essa analogia, vamos pensar no MST a partir de uma visão midiática, tentando assim apontar como o movimento procura se legitimar perante a sociedade para combater os estereótipos que a mídia hegemônica leva aos lares brasileiros, através de uma versão deturpada dos fatos. Assim sendo, no combate a essa ideologia dominante, o MST se sobrepõe e se defende, colocando em foco através de seu discurso político, que a terra é algo que traz dignidade e independência ao individuo, que a propriedade é algo que não representa um benefício econômico do ponto de vista capitalista do mundo moderno, e sim um direito que o individuo tem em possuir. Nessa concepção consideramos que do ponto de vista ideológico, o MST representa e defende uma aproximação, ou pelo menos o modelo semelhante adotado na sociedade Grega de acordo com os escritos de Pocock. Assim como na sociedade grega que “o cidadão possuía sua propriedade para poder ser autônomo, e a autonomia era necessária para que ele desenvolvesse a virtude ou a bondade”. (J.G.A.POCOCK, Pag. 141) No mundo moderno, a luta pela propriedade parte do mesmo pressuposto, assim dizem os Sem Terra: “Terra não se ganha, se conquista, (...) depois de quase nove meses de luta, conquistaram a terra onde agora vão trabalhar, alimentar seus filhos e sonhar com uma vida melhor”. (Jornal sem terra maio de 1986, Nº52 Ano V, pág. 4, grifo meu). Esse sonho com a vida melhor pode se analisado como um sonho pela dignidade humana, é um sonho em se sentir autônomo do ponto e vista da liberdade pública e civil, e além do mais, ter a tranquilidade de não se preocupar que no amanha pode ser novamente expulso do acampamento, por um grupo de pistoleiros.
Partiremos agora para uma análise de como a mídia retrata a questão da terra, como chave de análise vamos retratar duas edições de um semanário, a Revista Veja. Durante os anos de publicação da Veja encontram-se algumas referências em relação à questão agrária, no entanto, focamos nossa análise apenas em duas revistas da década de 80, a saber: a edição de número 876 de 19 de Julho de 1985 e a de número 928, que data de 18 de Junho de 1986, em que são destacadas em suas capas reportagens referentes à questão agrária. Na edição de 19 de junho de 1985, em que se apresenta como reportagem principal a questão agrária, há estampada na capa, a figura de um guardião da fazenda Camarões, no norte de Goiás (o famoso jagunço). Ao lado, a seguinte frase aparece em destaque: invasor que pisar aqui leva chumbo. Vem que tem. Além de tratar da violência no campo, a revista pretende discutir, ainda, o Plano Nacional de Reforma Agrária, proposta por Sarney8. A carta ao leitor é iniciada com os seguintes dizeres: o governo do presidente José Sarney está pagando um alto preço pela encenação feita em torno da reforma agrária (Veja 19/06/1985). A outra edição analisada da Veja que retrata a questão da terra no Brasil é a de número 928, de 18 de junho de 1986. Nesta edição, a revista faz apontamentos de como os fazendeiros estavam se unindo, a edição, que tem como título principal “A força da UDR (União Democrática Ruralista), como os fazendeiros enfrentam a reforma agrária do governo”, apresenta, estampado na capa, Ronaldo Caiado, então líder da UDR.
 O que tem de ponto de contato entre as edições da Veja e o que estamos analisando aqui? Para responder a esta questão vamos recorrer a um argumento de Pocock. A citação é longa, porém relevante.
 Propriedade traz poder: o poder dos senhores sobre os servos, o poder dos senhores sobre si próprios. Mas sempre que a fortuna provocar a existência de um número suficiente de senhores, estes poderão abandonar o domínio do poder e entrar no da autoridade. A autoridade não é distribuída pela propriedade, mas pelo reconhecimento por parte dos senhores livres da capacidade política uns dos outros. Ao instituí-la entre si eles penetram no mundo das relações políticas e começam a agir como as imagens de Deus que eles são. (J.G.A.POCOCK, Pag. 145).
Dito isso, a aproximação que é possível fazer entre a teoria da propriedade de Pocock e as atribuições de lutas do MST nessa situação é a seguinte: diante da luta empreendida pelos Sem Terra, o que a mídia procura mostrar são reportagens que giram em torno de quem possui propriedade, ou seja, quem não tem, não possui voz ativa nas decisões políticas, sendo assim, o que interessa é o que pensam os latifundiários, o ideal dos Sem Terra pouco se importa, não ter terra, é o mesmo que não possuir prestigio social. O que notamos é que quando a questão agrária é noticiada, o fazem de forma deturpada, sempre tratando os envolvidos como “baderneiros”, “vândalos”, “radicais” etc. Nas edições analisadas, por mais que a Veja trate da questão agrária, é evidente como o discurso se permeia em prol do interesse da elite latifundiária do país, como exemplo pode ser colocado em questionamento a escolha da revista em noticiar alguns eventos (UDR) e não dar a importância devida a outros (MST). Na segunda revista analisada, percebemos que, mesmo sendo a UDR de criação recente (na época da reportagem), por ser um órgão de representação burguesa, já se encontrava estampada na capa da revista como finalidade de reportagem principal. Por sua vez, o MST em nenhum momento é analisado nas duas edições trabalhadas, e quando aparece referência a ele, é de forma deturpada.
Tal análise nos permite pensar o quando a obtenção da propriedade de terra é um requisito básico para se possuir prestígio social, tanto na sociedade contemporânea como na sociedade antiga. A relação de poder trabalhada por Pocock na citação que acabamos de analisar pode ser associada ao modelo político que temos hoje, onde a bancada ruralista se apresenta como detentora das escolhas políticas no congresso nacional, ou seja, essa relação entre poder e propriedade analisada por Pocock, mesmo pertencendo a um período que em suas origens políticas e sociais apresentam diferentes perspectivas das estruturas de hoje, não deixa de apresentar também as suas permanências. Quando Pocock se refere à transformação do poder em autoridade ele se remete a preceitos semelhantes ao de que percebemos no Brasil de hoje, um país autoritário e que à questão agrária é algo ainda de lutas diversas. No Brasil da década de 80 do século passado, o poder dos latifundiários se transformou em autoridade na medida em que os trabalhadores rurais sem terra estavam se mobilizando pela busca do acesso a propriedade, daí surgi no país um grupo de pessoas que se organizam para defender o interesse dos proprietários de terra, a UDR.[1]
Para pensar a luta pela terra no Brasil se faz necessário compreender que ela não começou apenas com o surgimento dos movimentos sociais, como o MST de nossos dias. Ela percorre nossa História e está presente em vários períodos, e essa luta pelo acesso a terra não tem sua gênese apenas no Brasil, e sim a uma história da terra que precede o nosso “descobrimento”. Em se tratando de uma concepção nacional, já no descobrimento do Brasil essas lutas ganham visibilidade, no entanto, são temas raramente abordados no discurso contemporâneo. Os indígenas lutaram pela preservação de suas áreas diante da ação dos portugueses, pois, desde a colonização, os posseiros já buscavam terras para plantar. Outros exemplos importantes podem ser citados: as lutas dos quilombos; a busca pela conquista de terras por trabalhadores na cafeicultura no período do ciclo do café; a chamada “marcha para o oeste”[2] no governo getulista; as organizações de lavradores dos anos 1950/1960, em associações civis em suas diversas e criativas formas de resistências; a emergências das Ligas Camponesas[3] etc. Assim sendo, a História da luta pela terra no Brasil é desde de nossas origens coloniais um
(...) Processo de formação de nosso País, a luta de resistência começou com a chegada do colonizador europeu, há 500 anos, desde quando os povos indígenas resistem ao genocídio histórico. Começaram, então, as lutas contra o cativeiro, contra a exploração e, por conseguinte, contra o cativeiro da terra, contra a expropriação, contra a expulsão e contra a exclusão, que marcam a história dos trabalhadores desde a luta dos escravos, da luta dos imigrantes, da formação das lutas camponesas (FERNANDES, 2000, p.25).
Assim, nessa conjuntura, compreende-se que a formação do MST na década de 1980 foi apenas mais um processo de muitos que fazem parte da História pelo direito a propriedade. Compreende-se, a partir dessa perspectiva, que só existe o MST hoje porque antes dele a sociedade brasileira já tinha se organizado por justiça social e contra a dominação burguesa. E não pensar apenas o MST isolado do cenário mundial e histórico, mas tentar analisar sua luta como uma sequência até mesmo de períodos como o retratado por Pocock. Sabe-se bem que somos herdeiros das lutas históricas dos povos ameríndios, dos negros, dos brancos, dos estrangeiros, dos movimentos camponeses como a Liga Camponesa de resistência. Somos fruto de muitas reflexões. Somos fruto da teorização de muitas experiências de luta que nos antecederam e só assim, buscando compreender nossos antecedentes históricos, seremos capazes de entender as razões de luta pela propriedade hoje no Brasil que tem como maior representante social de luta por esse direito o MST.
É consideravelmente importante ressaltar ainda a importância da propriedade enquanto formação de uma economia para o/um país. Para confirmar essa tese vamos recorrer novamente ao MST. O MST ao longo dos anos conquistou um espaço importante no cenário nacional, favorecendo, com isso, a implantação de vários assentamentos, que desempenharam e desempenham um papel fundamental para a economia do país. Assentamentos rurais não devem ser confundidos apenas como propriedades rurais.
Assentamentos rurais aqui são entendidos como a ocupação e uso de terras para fins agrícolas, agropecuários e agroextrativistas em que um grupo de trabalhadores sem terra ou com pouca terra obteve a posse usufruto e/ ou propriedade sob a forma de lotes individuais e, em alguns casos, de áreas de uso e propriedades comuns, sendo o patrimônio fundiário envolvido resultante de processo de aquisição, desapropriação ou arrecadação pelo poder público e associado, de maneira explícita, pelos trabalhadores e/ou pelos agentes públicos, a processo de reforma agrária (MEDEIROS & LEITE. 2009, p.161).
A concentração de terras no Brasil tem suas origens no descobrimento. A luta pelo acesso a terra vem seguindo a nossa história, deixando marcas significantes na condução de um país que apresenta um território tão enorme e com tanta terra improfícua, que se torna necessário lutar por novos meios para a sua obtenção. E este é o papel que o MST vem desenvolvendo ao longo dos anos. Os assentamentos rurais, por sua vez, representam hoje na história do Brasil uma vitória ainda em fase inicial. Mas para chegar ao que temos hoje em assentamentos rurais foram preciso muitas lutas e conflitos. Não estamos vivendo o auge da conquista de acesso à propriedade de terra, mas pelo pouco que esta bandeira representa, avançamos  razoavelmente, se pensarmos um Brasil do século XVIII, em que a concentração de terras era ainda maior.
O acesso a terra é importante, mas em um país onde as disparidades econômicas são enormes, não adianta ser assentado e não receber condições de trabalhar a terra. Tal condição socioeconômica leva os trabalhadores rurais a venderem seus lotes para pequenos empresários, descaracterizando toda a estrutura da região e transformando-as em chácaras de recreio de grandes empresários. Incorporar terras que se encontram ociosas ao processo produtivo da agricultura e transformá-las em assentamentos rurais pode causar mudanças significativas em um país. Entre elas, podemos citar a criação direta e indiretamente de empregos, aumento de oferta de alimentos e matérias-primas para o mercado interno, obtenção de divisas, aumento da arrecadação tributária, melhorias na qualidade de vida, redução dos problemas urbanos decorrentes do crescimento das cidades e muitos outros.
            Toda essa análise da questão da propriedade de Pocock e da luta dos Sem Terra de hoje nos leva a concluir que o acesso terra nos dias de hoje tem um valor semelhante ao o que Pocock trabalha. O acesso à propriedade é um bem fundamental para uma vida digna assim também para o poder que o individuo tem frente à política e ainda frente às outras pessoas etc., nesse sentido, assim como na teoria de Pocock , a propriedade pode ser compreendida como algo que nos da autoridade e virtude. A busca pelo acesso a propriedade nos dias atuais passa obrigatoriamente, pela luta do fim do latifúndio. Acabar com o latifúndio não significa apenas fazer uma melhor distribuição das terras ou poder aumentar a produção de alimentos. Mas significa, sobretudo, criar condições para que a nossa sociedade avance numa democracia firme, segura; criar condições para que as pessoas possam exercer seus direitos de cidadãos, e ter o melhor de todos os benefícios que o individuo possa ter: autonomia e liberdade.

Bibliografia
A força da UDR, como os fazendeiros enfrentam a Reforma Agrária do Governo Revista VEJA, edição nº928. São Paulo: Editora Abril, 1986.
FERNANDES, Bernardo Mançano.  MST: Formação e Territorialização.  2ª ed. São Paulo: Hucitec, 1999.
__________. A Formação do MST no Brasil. Petrópolis, RJ: Vozes, 2000.
Invasor que pisar aqui leva chumbo. Vem que tem, Revista VEJA, edição nº876. São Paulo: Editora Abril, 1985.
Jornal Sem Terra. Boletim informativo da campanha de solidariedade aos agricultores sem-terra, Nº I, Maio de 1981.
_____________. Boletim informativo da campanha de solidariedade aos agricultores sem-terra, Nº 52, Ano V, Maio de 1986.
__________. A Reforma Agrária dos Trabalhadores, Nº 44, Junho de 1985.
__________. Caminhada no Sul, com força e com fé, Nº 54, Julho de 1986.
MEDEIROS, Leonildes servolo de. LEITE, Sergio (org.). A Formação Dos Assentamentos Rurais No Brasil: Processos sociais e políticas públicas. 2º Ed. Porto Alegre: editora da UFRGS, 2009.
___________. Assentamentos Rurais: Mudança Social e Dinâmica Regional. Rio de Janeiro: MAUAD, 2004.
POCOCK. J. G. A. “Modalidades do Tempo Político e do Tempo Histórico na Inglaterra do início do século XVIII” e “A mobilidade da propriedade e o nascimento da sociologia no século XVIII”. In.  Linguagens do Ideário Político. São Paulo: EDUSP, 2003.

Notas



[1] A União Democrática Ruralista (UDR) é uma entidade de classe que se destina a reunir ruralistas e tem como princípio fundamental a preservação do direito de propriedade e a manutenção da ordem e respeito às leis do País. O atual presidente da entidade é o agropecuarista, Luiz Antonio Nabhan Garcia, que preside as UDR's de São Paulo e a nacional em Brasília-DF. A entidade teve sua primeira sede regional fundada em 1985, na cidade de Presidente Prudente - SP, e posteriormente no ano 1986, na cidade de Goiânia - GO, em seguida foi fundada a primeira UDR - Nacional, com sede em Brasília - DF. Os proprietários rurais sentiram a necessidade de se mobilizarem para conscientizar o Congresso Nacional a criar uma Legislação que assegurasse os direitos de propriedade. Na época, uma ala política de esquerda radical queria acabar com esse direito com objetivo explícito de se implantar um sistema comunista no Brasil. A reação dos ruralistas foi imediata, decidiram então fundar a União Democrática Ruralista - UDR. Foi a maior mobilização do setor já visto neste país. Com isso, conseguiu-se colocar na Constituição de 1988 a Lei que preserva os direitos de propriedade rural em terras produtivas.De 1994 a 1996 a UDR ficou desativada devido a desmobilização da classe, que sentiu-se mais segura após as conquistas na Constituinte e o afastamento dos riscos sobre o direito de propriedade. No final de 1996 a entidade foi reativada em Presidente Prudente-SP, região conhecida também por Pontal do Paranapanema. Atualmente, a União Democrática Ruralista - Nacional, também foi reativada e tem sua sede em Brasília-DF. Retirado de http://www.udr.org.br/historico.htm, acesso em 13/02/2014.
[2] A marcha para o Oeste foi uma política de governo de Getúlio Vargas, na intenção de povoar a região centro-oeste brasileira, devido ao fato de ali existirem muitas terras ociosas. Essa medida visava, ainda, diminuir as pressões existentes no centro-sul do país, levando os moradores dessa região para regiões que produzissem matérias primas e gêneros alimentícios para ajudar a preço baixo na implantação da industrialização na região Sudeste.

[3] As Ligas Camponesas foram as organizações que mais ficaram identificadas com as mobilizações no campo ocorridas anteriormente ao golpe de 1964. A primeira delas foi criada em 1955, no Engenho Galiléia, em Pernambuco. Deste pólo inicial, tendo à frente o advogado e deputado Francisco Julião, elas rapidamente se expandiram por vários municípios pernambucanos, chegando mesmo a estabelecer núcleos em outros estados do Nordeste e a alcançar projeção nacional no início da década de 1960. Retirado de: http://cpdoc.fgv.br/producao/dossies/Jango/glossario/ligas_camponesas, acesso em 13/02/2014.